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turismo sustentável
O Turismo Ecológico
Sustentável e a Autoconsciência do Homem Contemporâneo:
uma Abordagem Filosófica da Questão Ambiental
Enrique Blanco*
Abstract
The
concept and the ideal of nature have changed throughout history.
Presently, consumption logic has guided human interventions in
nature, considered as an inexhaustible source of resources.
Ecological tourism, taken as one of those interventions, lacks the
critical space needed for reflection on its practices. The
philosophy of nature or ecophilosophy can help in this process,
contributing with philosophical reasoning to mediate the ground
between humankind, tourism, and nature.
Key
words: Ecotourism; Ecophilosophy; Self-Awareness; Sustainable
Consumption; Environmental Education.
Se banirmos da
superfície da terra o homem ou o ser pensante e contemplador, esse
espetáculo patético e sublime da natureza não é mais do que uma cena
triste e muda; o universo cala-se, o silêncio e a noite dele
apoderam-se. Tudo se transforma numa vasta solidão onde os fenômenos
inobservados se passam de uma maneira obscura e surda. É a presença
do homem que torna a existência dos seres interessante.1
Denis Diderot -
Filósofo e escritor francês.
(1713-1784)
A busca pelo significado
da natureza acompanha o homem desde os primórdios da humanidade.
Essa questão possui um caráter eminentemente filosófico, pois remete
o homem ao que ele pôde pensar de mais originário, a partir de sua
própria existência no mundo. De fato, a investigação acerca da idéia
de natureza confunde-se e incorpora-se ao surgimento e
desenvolvimento das mais remotas civilizações.
Na antiga Grécia, cerca de VII a.C, a natureza era pensada pelos
filósofos da physis, conhecidos por filósofos pré-socráticos, como
sendo a arché, o princípio que representava o devir do mundo
orgânico e inorgânico, integrando num único movimento criador, tudo
o que existia no universo. Por isso, partindo da observação e da
pura especulação, a origem de todas as coisas era pensada por esses
filósofos da natureza como sendo a água, o ar, o fogo, a terra ou
até mesmo o ápeiron (o ilimitado). Assim, desde o surgimento dos
antiqüíssimos mitos cosmogônicos (kósmos: mundo e gónos: origem),
passando pela teogonia (théos: deus e gónos: origem), o homem grego
alcança a cosmologia (kósmos: mundo e logos: explicação racional), e
constrói a idéia de natureza como o princípio gerador da criação e
da destruição, de onde tudo surge e para onde tudo retorna. Essa
ordem harmônica de constante e eterna transformação fazia com que a
natureza ocupasse, na hierarquia dos seres e das coisas criadas, o
mesmo grau de importância que o homem.
Contudo, com o
passar dos séculos, a idéia que o homem tinha a respeito da natureza
se modifica drasticamente. A natureza, que representava a noção da
grande mãe por sua potência criadora, passa a ser vista como mera
escrava, pela capacidade humana de subjugá-la e subtrair suas
riquezas. Nesse cenário, a filosofia da natureza perde lugar para a
ciência da natureza, disciplina essa voltada para a compreensão dos
fenômenos naturais, a partir de sistemas organizados, métodos e
doutrinas. O pensamento holístico dos antigos filósofos da physis,
fundado na idéia de que tudo era Um, passa a ser visto com desprezo
por não ser considerado científico. Para a compreensão analítica e
sistematizada do mundo natural, deveria ocorrer a irremediável e
urgente cisão entre o homem e a natureza. A filosofia moderna se une
ao pensamento científico, estabelecendo a dicotomia entre sujeito e
objeto, fazendo com que a natureza seja, a partir de então,
considerada como o “outro” que subsiste fora do homem, isto é, a
natureza passa a ser tudo o que não é o homem. O outro, o estranho,
o desconhecido que deve ser estudado, catalogado, entendido e
sistematizado. A natureza passa a ser vista como enigma ameaçador e
não mais como princípio originário.
Nesse sentido, apesar de reconhecermos a inestimável importância de
Descartes para a modernidade, não podemos deixar de identificar na
filosofia cartesiana, o reconhecido abismo que esta criou entre o
homem e o mundo natural. O domínio da natureza passou,
necessariamente, pelos postulados cartesianos que explicavam o homem
como res cogitans (coisa pensante), e o mundo material como res
extensa (coisa extensa). Como se sabe, Descartes2
entendia o corpo como sendo um engenho mecânico e material, logo, o
significado da res extensa incluía, além de todas as coisas
materiais existentes no mundo, o próprio corpo humano como sendo a
representação material da substância pensante. Por sua vez, a res
cogitans representava o pensamento como sendo a substância primeira
do ser, instituindo assim, a supremacia do homem em relação ao mundo
físico e a todos os seres que não possuíam a ratio (a razão). Dessa
forma, estabelece-se a dicotomia radical e definitiva entre o mundo
natural, enquanto objeto de conhecimento, e o homem, enquanto
sujeito do ato de conhecer. Esta divergência fundamental será a base
para o afastamento cada vez maior entre a natureza e o ser.
Mas será que não havia
outra maneira de se pensar a natureza? Será que, para podermos
conviver com os caprichos da natureza, e dela retirarmos nosso
sustento e desenvolvimento, deveríamos ter partido de uma dicotomia
total entre o homem e o mundo natural? Acreditamos firmemente que
não, e um exemplo de que podemos reverter essa cisão radical entre a
natureza e o homem, é a idéia do desenvolvimento sustentável.
De fato, tentar estabelecer uma visão mais holística e integradora
entre a teoria e a práxis, ou seja, associar o que fazer ao como se
deve fazer, sempre foi a intenção de vários filósofos e cientistas
sociais. Seguindo essa proposta, várias instituições e organismos
nacionais e internacionais ligados ao meio ambiente tentam
implementar o seguinte projeto: como conciliar o consumo dos
recursos naturais com os fundamentos da sustentabilidade. Essa idéia
ganhou diversas formas de atuação, como por exemplo, o
desenvolvimento de técnicas para a produção de fontes de energia
renovável, a pesquisa de novos modelos de reciclagem, a prática do
reflorestamento de áreas degradadas, entre outras importantes ações.
Todas essas atitudes visam controlar o consumo irresponsável da
natureza, partindo do critério da racionalização do uso dos recursos
naturais.
Todavia, uma nova forma de consumo ligada ao meio ambiente está se
desenvolvendo nos últimos anos: é o turismo ecológico. Gostaríamos
de ressaltar, antes de tudo, que o turismo ecológico é uma forma de
consumo da natureza, e é este o principal motivo que o obriga a ser
realizado de forma consciente, isto é, de maneira sustentável. Com
efeito, parece que não se tem dado a devida atenção a este fato,
qual seja, que o turismo é uma forma de consumo. A realidade de
mercado prevê, através da lógica de consumo, que os produtos sejam
constantemente repostos para que os clientes possam comprá-los,
fenômeno que, obviamente, é impossível ocorrer com a natureza. Mas,
apesar de o “produto” natureza ser bem mais nobre do que uma mera
garrafa de refrigerante, e nos parecer, à primeira vista, que o
mundo natural nunca vai se acabar, não nos enganemos: o turismo,
antes de ser ecológico, é uma forma de consumo.
Partindo desse princípio, muito tem-se falado sobre a importância do
turismo ecológico para a economia dos estados e dos países que
possuem, por dádiva da natureza, verdadeiros paraísos terrestres com
belas paisagens, animais exóticos e um ritmo de vida muito tranqüilo
e aprazível. De fato, seria um equívoco não aproveitar tais recursos
naturais como fonte de renda reversível em benefício das populações
locais, ao mesmo tempo que se deve promover a preservação das suas
tradições e dos seus costumes, pois tais populações sempre sofrem
alguma forma de influência, nem sempre positiva, da cultura e dos
hábitos dos visitantes.
No entanto, não só
a cultura desses povos vem sofrendo o impacto da presença cada vez
maior e desorganizada dos turistas ecológicos. A natureza, que
sempre teve o papel de seduzir o viajante, está sendo desprezada e
encarada como mais um produto de consumo nas “excursões verdes”. A
natureza, sempre considerada a causa e origem do ecoturismo, tem se
tornado o alvo da Indústria do Lazer. Isso não seria um grande
problema, se esse lazer fosse feito de maneira consciente. Mas,
infelizmente, não é o que se tem verificado. O homem contemporâneo
sente a necessidade de consumir seu tempo livre de maneira frenética
e aleatória, realidade essa comprovada, por inúmeras pesquisas de
mercado. De fato, podemos identificar o resultado de todo esse
processo num fenômeno que nos parece extremamente problemático: a
prática irresponsável e predatória do turismo ecológico, baseada na
deturpada idéia contemporânea de natureza, em que consiste entender
o mundo natural, fundamentalmente, como um produto de consumo.3
O fenômeno responsável
por essa idéia desvirtuada acerca da natureza foi a dicotomia entre
o homem e o mundo natural, proporcionada pelo processo de domínio,
subjugação e conhecimento exaustivo dos mecanismos e dos processos
naturais. Outro fator de fundamental importância para reforçar essa
visão distorcida é acreditar na falsa noção de que o mundo natural é
uma fonte inesgotável de recursos a serem consumidos,
indiscriminadamente, sem a necessidade de haver a preservação desta
mesma fonte. Além desses fatores, existem ainda as inúmeras
associações que várias religiões sempre fizeram entre Deus e a
própria natureza. Porém, essa visão religiosa moderna não
corresponde à antiga concepção grega de natureza, que entendia o
princípio originário do universo como algo divino. Na antiga Grécia
havia uma forma de reverência em relação ao mundo natural,
totalmente diversa da que temos hoje. Quando o homem contemporâneo
associa Deus à natureza, uma outra forma de se relacionar com o
mundo natural se estabelece: se Deus é eterno, caridoso e
inesgotável em toda sua infinita benevolência; nada mais lógico do
que ver a natureza como possuidora de todos esses atributos divinos
de eternidade e de inesgotabilidade. Ora, tudo que é eterno e
inesgotável pode ser consumido, sem a menor preocupação de
sustentabilidade ou controle.
O resumo desse longo
processo em que se construiu a relação do homem com o mundo natural,
está baseado nas três concepções acerca da natureza as quais fizemos
referência – a científica, a divina e a mercadológica –, e tem como
resultado, a idéia e o ideal contemporâneo de natureza. A clássica
distinção entre natureza e cultura, proposta por célebres
antropólogos e sociólogos, parece não ter muito mais sentido nos
dias de hoje. A mídia nacional e internacional, com suas visões
folclorizadas em relação ao mundo natural, juntamente com as
políticas ambientais propostas por algumas entidades públicas ou
não-governamentais, e por que não dizer, o próprio turismo
ecológico, parecem ter uma interpretação homogênea e pasteurizada
acerca da natureza. Por isso, não se precisa mais escrever vários
tratados acadêmicos para se diferenciar natureza de cultura, pois
atualmente o homem afirma: natureza é cultura. O homem cria tudo,
desde as piscinas com ondas até estações de esqui em pleno deserto.
O sonho de domínio e consumo da natureza só parece diminuir um
pouco, quando o controle humano sobre o mundo natural é desafiado
pelos ditos desastres naturais.
A reversão deste quadro
se faz necessária e urgente. Acreditamos que a filosofia, associada
à educação ambiental, poderia prestar um grande serviço em desfazer
equívocos em relação ao entendimento do mundo natural e juntas
construir uma idéia de natureza mais afinada com a realidade atual.
Como uma das maiores preocupações da filosofia é a objetivação da
teoria na práxis social, devemos procurar alcançar o maior número de
pessoas. Uma excelente oportunidade para realizar essa proposta é o
próprio ecoturismo, pois ele mobiliza milhões de pessoas no mundo
inteiro, e tende a crescer cada vez mais. Como no Brasil esta
realidade não é diferente, por que não aproveitar o momento atual
para incluir o saber filosófico neste verdadeiro movimento social
proporcionado pelo turismo ecológico?
Para isso,
deveríamos conhecer melhor uma disciplina filosófica extremamente
importante, que surgiu, na década de 1990, na Alemanha: a
ecofilosofia. Como a ecofilósofa Márcia Gonçalves esclarece,4
a intenção dos ecofilósofos é fornecer o instrumental teórico para
os atuais movimentos ecológicos, a fim de aprofundar discussões
fundamentais para a questão ambiental, tendo como princípio a
necessidade de reavaliar as múltiplas relações que o homem mantém
com a natureza. Na verdade, a ecofilosofia é a filosofia da natureza
aplicada na prática, em que consiste deslocar as reflexões a
respeito do homem em direção das questões referentes à própria
natureza. A partir dessa abordagem filosófica acerca da natureza,
pode ser construída uma visão mais conseqüente em relação ao mundo
natural. Entendemos que o espaço aberto pelo turismo ecológico pode
ser um meio extremamente interessante para a aproximação do saber
filosófico com a sociedade, e, assim, poder efetivamente construir
um turismo ecológico sustentável.
Como Nietzsche nos
diz: “São os tempos de grande perigo em que aparecem os filósofos.
Então, quando a roda rola com sempre mais rapidez, eles e a arte
tomam o lugar dos mitos em extinção. Mas projetam-se muito à frente,
pois só muito devagar a atenção dos contemporâneos para eles se
volta”.5
Acreditamos que o
conhecimento filosófico tradicional e a ecofilosofia podem nos
ajudar nesse momento de grande perigo pelo qual passa o meio
ambiente. Não devemos esperar pelo auxílio de multinacionais
comprometidas unicamente com suas taxas de crescimento e aumento de
produção, e nem por líderes políticos que pensam em projetos como,
por exemplo, o “Projeto Bosque Saudável”, que para evitar as
queimadas da floresta propõe a derrubada de, absolutamente, todas as
árvores. Ficamos atônitos com decisões como esta, pois não
entendemos o que leva as pessoas raciocinarem dessa maneira. A
resposta pode ser o completo e total desprezo pelo mundo natural,
devido à vontade frenética de subjugação técnica e científica, e
ainda, pela idéia que a natureza representa um produto de consumo
inextinguível e auto-renovável. Fatos como esse nos fazem retornar à
proposta da união entre a filosofia e a sociedade. A prática do
turismo ecológico é o campo ideal para se formar uma consciência
ecológica efetiva, partindo dos conhecimentos filosóficos a serem
aplicados pela educação ambiental. A intenção seria construir uma
nova postura frente à questão ambiental, tendo como base o
conhecimento filosófico. Dessa maneira, a prática do turismo
ecológico poderia se tornar efetivamente sustentável, pois o
respeito à natureza depende, primeiramente, do respeito pela própria
vida humana, que passa anteriormente pela questão da consciência de
si. Consciência de si como ato, isto é, a autoconsciência a respeito
de si próprio e de seu papel na sociedade. Essas questões, aliás,
são fundamentais para a filosofia, pois ela já trabalha há muito
tempo com esses problemas. Sartre diz que temos a liberdade de
consciência para a práxis social e individual.6
Este é o sentido do engajamento do homem consigo mesmo e com o todo
social. Na verdade, a noção de engajamento é um dos pontos
principais da filosofia existencialista de Sartre. O autor também
afirma7
que estar engajado significa a condição do homem em situação, pois é
isso que faz com que o indivíduo esteja situado na realidade que o
circunda, e da qual ele faz parte. Assim, o homem pode dar um
sentido real a sua existência, como fez o célebre personagem
sartreano, Antoine Roquetin, que se engajou consigo mesmo e com seu
papel na sociedade, na obra A Náusea.8
Outros dois
conceitos fundamentais da obra sartreana, que acreditamos ser de
vital importância para a questão ambiental, é a idéia de projeto e a
de compromisso. Segundo Sartre, esses são os fundamentos para a
construção de uma práxis individual e social, como está exposto em
sua obra, A Crítica da Razão Dialética.9
A práxis estabelece a necessidade de ‘interiorização do exterior’ e
de ‘exteriorização do interior’.1010
O indivíduo se compromete em um projeto de ação efetiva que é muito
maior do que meras ações esporádicas sem um objetivo determinado,
pois a idéia de compromisso orienta um projeto de vida. Ora, por que
não integramos e direcionamos todos esses conceitos filosóficos,
juntamente com a ecofilosofia, para pensar e agir no âmbito das
questões ambientais?
A postura filosófica
frente à realidade não deve ser vista como uma mera utopia que não
tem a menor referência com a vida concreta. Muito pelo contrário, o
engajamento individual e social deve ser entendido em seu sentido
existencial, ou seja, como visão de mundo. Atualmente, as pessoas
até se envolvem, mas não se comprometem com a questão ambiental, por
isso, a idéia é desenvolver uma “representação de mundo”, uma
Weltanschauung comum em relação à questão ambiental. Acreditamos que
o respeito pelo meio ambiente passa, necessariamente e
anteriormente, pelo respeito a si mesmo, mediante o processo de
autoconsciência proposto pela filosofia. Esta é a base para a
efetiva transformação do que está estabelecido, por meio da concreta
mudança individual. Partindo da afirmação do “Eu”, o homem pode
alterar seu cotidiano. Como afirma Maria Civiletti, citando Mead:
Embora o indivíduo
se forme a partir do social, via processo de internalização, é
importante ressaltar que este processo é profundamente dialético,
possuindo o sujeito um papel ativo. Um indivíduo isolado não é capaz
de reorganizar toda a sociedade, mas ele a afeta continuamente por
meio de sua própria atitude, pois provoca a reação do grupo face a
ele, responde a esta reação, o que por sua vez muda a atitude do
grupo”.11
Estamos falando de
uma ação efetivamente concreta. Concordamos totalmente com Adorno
quando ele afirma que: “Uma reflexão pura, que se abstém de toda
intervenção, serve apenas para reforçar aquilo diante da qual
retrocede atemorizada”.12
Devemos parar de pensar que a filosofia não tem a menor implicação
com a realidade. As idéias têm conseqüências e podemos ver isso
todos os dias, na filosofia política, no direito, na economia e em
vários setores da vida real que afetam diretamente nossa existência
cotidiana de maneira dinâmica e transformadora. Como Civiletti nos
alerta: “A relação cultura/indivíduo não é um dado, um sistema
estático ao qual o indivíduo se submete, e sim um plano de
negociações onde seus membros estão em constante processo de
recriação e reiteração de informações, conceitos e significados”.13
Esta é a importância do
pensamento filosófico para a valorização do meio ambiente: quando o
homem estabelece a consciência de si como ato, ou seja, quando se vê
como um ser individual e universal e aplica essa realidade a sua
própria vida e à sociedade, ele constrói uma nova visão de mundo.
Essa visão de mundo é semelhante àquela que nós fizemos referência,
quando abordamos o ideal de natureza desenvolvido pelo homem grego.
O homem se percebe um com o Todo, isto é, ele se compreende como
parte indissociável do mundo natural, e por isso, nunca aceitará a
idéia deturpada de natureza, que vê o mundo físico como produto de
consumo. Para essa nova postura, que pretende reavaliar o atual
processo de interação do homem com a natureza, a ecofilosofia pode
trazer todo o instrumental teórico para elaboração de uma práxis,
efetivamente, sustentável e conseqüente. Dessa maneira, o turismo
ecológico sustentável poderia ser realmente viável, pois evitaria as
determinantes autoritárias da Indústria do Lazer. A solicitação é a
seguinte: menos profissionalismo de mercado e mais formação
filosófica no campo do turismo ecológico.
O início desse
processo poderia ser realizado pela educação ambiental nas próprias
rotinas dos passeios ecológicos, como, por exemplo, por meio da
antiga prática grega chamada de movimento peripatético, no qual
havia a interação do discurso filosófico com a prática da caminhada,
ou seja, andar e pensar ao mesmo tempo. Que melhor lugar para
resgatar essa prática do que nos passeios ecológicos? Poderiam ser
ministradas palestras, pequenos seminários, discussões coletivas,
inclusive com o uso de novas mídias, como o desenho animado, a
história em quadrinhos e até a encenação teatral; a fim de integrar,
nas próprias sedes das excursões ecológicas, o discurso filosófico
com a questão ambiental. Por que encontramos, na maioria dos
folhetos e das propagandas que divulgam o turismo ecológico,
objetivos direcionados apenas para a aventura, para a fruição da
beleza, para a saúde física, para o alívio do estresse, etc?
Obviamente, todos esses objetivos são muito importantes e devem ser
mantidos, mas não bastam para que haja a mudança de paradigma que
propomos. Não nos esqueçamos de que: “São os tempos de grande perigo
em que aparecem os filósofos”.14
Devemos ter em mente que o primeiro passo para que exista uma
prática sustentável no campo do turismo ecológico é que essa
experiência tenha um forte e profundo embasamento teórico.
Acreditamos que a filosofia pode instaurar na atividade do turismo
ecológico uma nova proposta de sustentabilidade ambiental. Seria
muita arrogância de nossa racionalidade ocidental contemporânea
acreditar que problemas fundamentais como a questão da
autoconsciência individual - que pode se refletir na práxis
cotidiana - pudessem ser uma questão menor, e que já estaria
resolvida há muito tempo. De fato, essa questão não está nem de
longe resolvida. Caso contrário, não estaríamos investindo milhares
de páginas de pesquisa, inúmeras reuniões, congressos e palestras
para reaproximar o homem da natureza e engajar os indivíduos em
causas sociais. Nesse compromisso da filosofia com a causa ambiental
poderia ser construído um verdadeiro esclarecimento ecológico, uma
espécie de aufklärung15
ambiental, proporcionando, assim, uma idéia mais conseqüente a
respeito da natureza. Este esclarecimento teria um sentido
efetivamente emancipatório, e não repressor e unilateral, como
apontado por Adorno e Horkheimer na obra Dialética do
Esclarecimento.16
De fato, a conhecida Escola de Frankfurt entendia que a Indústria
Cultural fazia o papel de mistificação das massas por meio de um
falso esclarecimento. Esse esclarecimento inculcava na sociedade,
por intermédio dos mecanismos de opressão existentes nos meios de
comunicação de massa, a idéia de que a razão instrumental seria o
ápice da humanidade em seu processo de desenvolvimento racional. A
cultura mercantilizada serviria para esse processo de uma falsa
emancipação humana. Como Rodrigo Duarte afirma, esta falsa idéia de
esclarecimento é proporcionada pelo: “medo ancestral do homem diante
das ameaçadoras forças naturais”, que, por sua vez, “se corporificou
no conceito moderno de ‘técnica’, que não tem como objetivo a
felicidade do gênero humano, mas apenas uma precisão metodológica
que potencialize o domínio sobre a natureza”.17
A questão fundamental é
fazer uma crítica rigorosa à visão antropocêntrica de natureza, na
qual o homem é considerado como o centro do mundo, e a natureza uma
fonte inesgotável de riquezas. Nem uma visão idílica, bucólica e
ufanista em relação à natureza, nem tão pouco a proposta do “bosque
saudável” ou do meio ambiente encarado como mero produto de consumo.
Devemos ter a preocupação de restaurar uma visão holística a
respeito da natureza numa perspectiva contemporânea, contrária,
obviamente, à falsa idéia de reunificação do homem com a natureza,
pela prática do consumo proposta pela Indústria Cultural-do-Lazer. A
idéia é compreender o homem e o mundo natural, numa relação efetiva
e concreta de convívio verdadeiramente sustentável. Aliás, as
populações indígenas sempre tiveram essa preocupação de equilíbrio
sustentável, vide o célebre caso do chefe da tribo americana sioux
que, já no século XIX, reclamava do descaso que o homem branco tinha
pela natureza com a prática da caça indiscriminada dos bisões,
afetando, assim, o equilíbrio entre o homem e o mundo natural. Ou
ainda, lembremo-nos do profundo respeito que as tribos indígenas
brasileiras têm em relação à natureza, considerado-a origem e fonte
da vida orgânica e inorgânica.
Parece, realmente,
que o problema está em nossa atual matriz racionalista ocidental que
tudo quer catalogar, sistematizar e quantificar. Quase na mesma
época em que na Grécia, os filósofos da natureza afirmavam a
integração harmônica e orgânica do homem com o mundo natural, temos
no longínquo oriente, aproximadamente no século VI a.C, as seguintes
palavras de Lao Tsé, (popularmente, o “Velho Filósofo”): “Tudo que
existe, é um incessante vir e voltar, um nascer e morrer. O que
retorna, volta ao Imperecível. Quem isto compreende é sábio. Quem
não compreende é autor de males”.18
Talvez, um dos males provocados pelos que não compreendem essa
unidade com o Todo, é o patente desrespeito do homem contemporâneo
em relação ao mundo natural. Tanto para os antigos filósofos do
ocidente, os filósofos da physis, como para o taoísmo do “Velho
Filósofo”, a natureza sempre foi o princípio gerador e unificador do
ser com algo que está para além da própria compreensão humana.
Faria-nos muito bem um pouco de humildade em relação à natureza, a
fim de entendermos que somos apenas uma parte em relação ao Todo
incognoscível. Ao mesmo tempo, essa humildade não provocaria uma
mera contemplação bucólica e passiva, mas antes, a decisão prática
de integrar a filosofia e a ecofilosofia com as causas ambientais, e
com todos os desdobramentos relativos ao meio ambiente. Um desses
desdobramentos, em que a filosofia pode e deve atuar é, exatamente,
a questão do turismo ecológico, para que possa torná-lo efetivamente
sustentável. Não se deve permitir que a lógica de mercado e a
Indústria Cultural ocupem o valioso espaço do turismo ecológico, e o
tornem definitivamente insustentável, por meio de uma
mercantilização irresponsável.
Por que continuar,
apenas, com a prática da coleta dos dejetos lançados nas trilhas das
florestas, e com os processos de bioremediação das áreas degradadas
por ação dos turistas “descuidados”, quando se pode fazer uma
intervenção educativa muito mais ampla? Como Carlos Walter Porto
Gonçalves19
nos diz, temos que parar de pensar sobre o “meio” ambiente e passar
a entendê-lo por inteiro. Este é o papel da educação. Quando se
educa o aluno no sentido de que ele não deve depredar um monumento
histórico ou uma pracinha, porque essas coisas pertencem a ele
mesmo, inaugura-se um novo mundo para o jovem. O conceito de
cidadania passa a ter um significado real e concreto para ele, e
nunca mais essa palavra terá um sentido abstrato e desprovido de
referência imediata com a realidade. Logo, é imprescindível a
interiorização do conceito de pertencer. O homem deve aceitar que
pertence ao meio ambiente, para se poder criar uma espécie de
“cidadania ecológica”, e, com isso, desenvolver um sentido de
identidade com a natureza.
Uma das melhores
maneiras de promover o respeito e a responsabilidade com uma
determinada cultura é, exatamente, conhecer e se envolver com esta
cultura. Por que não transpomos essa lógica de relacionamento para a
questão ambiental, particularizando essa ação no caso do turismo
ecológico? Ou seja, por que não aproveitar o envolvimento que as
pessoas estabelecem com o meio ambiente, pela atual prática do
turismo ecológico, para podermos incorporar, no mesmo momento, o
conhecimento filosófico acerca da natureza. A prática filosófica
sendo utilizada como ferramenta, para que o indivíduo procure se
aprofundar no conhecimento de si mesmo (conhecimento de si como
ato), juntamente com uma percepção mais conseqüente em relação à
natureza, partindo sempre das questões fundamentais concernentes ao
meio ambiente.
O ponto de
intersecção para instaurar esse diálogo, o que chamamos na falta de
termo melhor, de aufklärung ambiental, seria exatamente, a prática
do turismo ecológico, em que a educação ambiental poderia viabilizar
esse discurso integrador. Essencial seria interiorizarmos a idéia de
pertencer ao mundo, ou como Heidegger20
nos diz, nos entender como ser-no-mundo, a partir de outro conceito
fundamental para o autor, que é o da circunvisão. Como Márcia de Sá
Cavalcante afirma, em nota ao texto de Heidegger, Ser e Tempo, o
significado de circunvisão é: “A construção do mundo cotidiano das
ocupações não é cega, mas guiada por uma visão de conjunto, a
circunvisão, que abarca o material, o usuário, o uso, a obra, em
todas suas ordens”.21
Acreditamos, firmemente, que a aplicação de todos esses conceitos
filosóficos à questão ambiental poderia dar uma nova visão a
respeito da relação do homem com a natureza, isto é, uma visão mais
consciente do mundo natural a partir da consciência de si.
Como está citado
na epígrafe desse trabalho, quem dá sentido à natureza é o próprio
homem, é ele que a contempla e reflete sobre ela: “É a presença do
homem que torna a existência dos seres interessante”.22
Contudo, o contínuo abandono e o desprezo acerca do saber filosófico
deixou o homem sozinho com sua própria falta de consciência a
respeito de si mesmo, do outro, e do mundo natural. Por isso, se faz
urgente mudar o paradigma de abordagem sobre a questão ambiental, e
aceitar o auxílio dos filósofos e dos ecofilósofos para integrar às
fileiras das pessoas comprometidas com o projeto ambiental.
NOTAS
1 Citado por: DOBRÁNSZKY, Enid Abreu. No tear de palas: imaginação e
gênio no século XVIII - uma introdução. Campinas: Papirus, 1992. p.
129.
2 DESCARTES, René. Discurso do método: meditações; objeções e
respostas; as paixões da alma; cartas. São Paulo: Abril Cultural,
1973. Os Pensadores.
3 A idéia de que a natureza passa a ser vista como um produto de
consumo pela sociedade contemporânea, é um desdobramento proposto
por nós, em relação à Teoria Crítica da Sociedade da Escola de
Frankfurt. De fato, entendemos que a Indústria do Lazer opera de
maneira análoga à Industria Cultural, no sentido da “mistificação
das massas”, a partir da falsa idéia de reunificação do homem com a
natureza pela prática do consumo. Como Rodrigo Duarte esclarece, a
Indústria Cultural representa a “falsa identidade do universal e do
particular”, ou seja, a aparência de que o indivíduo e o todo se
encontram reconciliados quando, na verdade, tal sistema é um
poderoso instrumento para – simultaneamente – gerar lucros e exercer
um tipo de controle social: DUARTE, Rodrigo. Adorno/Horkheimer & a
dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. p.
38.
4 GONÇALVES, Márcia C. A Ecofilosofia chega ao Brasil. Senac e
Educação Ambiental, Rio de Janeiro, Senac Nacional, v. 10, n° 3,
2001.
5 Citado por Emmanuel Carneiro Leão. HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo.
Petrópolis: Vozes, 2001. p. 11. Parte I.
6 A idéia de intencionalidade da consciência proposta por Sartre,
isto é, fornecer à consciência um caráter dinâmico e um sentido
intencional, foi influência da Fenomenologia de Husserl. Para
Sartre, a consciência humana está intrinsecamente ligada ao mundo:
“A consciência e o mundo são dados de um só golpe: exterior por
essência à consciência, o mundo é por essência relativo a ela”.
Citado por: MACIEL, Luiz C. Sartre: vida e obra. 5.ed. São Paulo:
Paz e Terra, 1986. p. 35.
7 SARTRE, Jean-Paul. O Existencialismo é um humanismo. São Paulo:
Abril Cultural, 1978. Os Pensadores.
8 Id. A Náusea. Trad. de Rita Braga. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1983. (Grandes Romances)
9 Id. A Crítica da razão dialética: precedido por questões do
método. Trad. de Guilherme João de Freitas Teixeira. Rio de Janeiro:
DP&A, 2002.
10 Id. (1978) op. cit., p. 163.
11 CIVILETTI, Maria V. P. Interação social, cultura e
desenvolvimento. Ciências Humanas, Rio de Janeiro, Gama Filho, v.
18, n° 30, ago., 1995. p. 121.
12 Citado por: RAMOS DE OLIVEIRA, Newton et al. Adorno: o poder
educativo do pensamento crítico. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2001. p.
180.
13 CIVILETTI, Maria V. P. (1995) op. cit., p. 121.
14 Citado por Emmanuel Carneiro Leão HEIDEGGER, M. Ser e Tempo.
Petrópolis: Vozes, 2001. p. 11. Parte I.
15 Este termo foi utilizado no período do Iluminismo, para
identificar a possibilidade do “esclarecimento”, da “iluminação”,
que o conhecimento poderia provocar no indivíduo, e por conseguinte,
em toda a sociedade. Na verdade, o sentido de esclarecimento que
propomos está fundado na idéia de razão emancipatória, exposta pela
Escola de Frankfurt, e não com o esclarecimento racionalista
proveniente da razão instrumental, o qual é posto em cheque pela
Teoria Crítica da Sociedade. Utilizamos, assim, apenas o termo
aufklärung como uma palavra desprovida do significado opressor da
racionalidade iluminista.
16 ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento:
fragmentos filosóficos. Tradução Guido Antonio de Almeida. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1997. 17 DUARTE, Rodrigo. (2002) op. cit., p.
27.
18 TSÉ, Lao. Tao Te King: cumprimento da ordem cósmica. Trad. de
Huberto Rohden. São Paulo: Fundação Alvorada, [s.d.] p. 72-73.
19 GONÇALVES, Carlos W. P. A Amazônia não é um vazio demográfico
cultural. Senac e Educação Ambiental, Rio de Janeiro, Senac
Nacional, v. 11, n° 2, 2002.
20 HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. 10 ed. Petrópolis: Vozes, 2001.
Parte I.
21 Id. ibid., p. 314.
22 DIDEROT, D. Apud. DOBRÁNSZKY, E. (1992) op. cit., p. 129.
Enrique Blanco
http://www.senac.br/informativo/BTS/293/boltec293e.htm
SENAC
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